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Thursday
Jul032003

Os herdeiros de Frankenstein

POR MARIA TERESA SANTORO E REJANE CANTONI
REVISTA TROPICO

2003


O sonho antigo de criação de vida artificial se torna realidade. Estamos preparados? 

 

Boris Karloff em "Frankenstein" (1931)

 

 

 

 

 

A forma mais simples de gerar vida não envolve mais que o contato físico entre dois operadores não especializados. Mas se, por motivos diversos, seres humanos renunciarem a esse comprovado método, para produzir “criaturas vivas” pode-se recorrer a uma série de artifícios que vão desde o mecânico até o genético.

A idéia de criar vida por meios não naturais é muito antiga. Do mito da vida artificial, ou seja, da criação artificial de entidades que podem evoluir, reproduzir-se, adaptar-se e colaborar entre si e com outros seres, conhece-se versões desde a mitologia grega. Versões antigas são a de Talos, o gigante de bronze forjado por Hefaístos (o deus grego da metalurgia) para proteger a ilha de Creta; a das donzelas mecânicas de ouro da fragata de Hefestos, mencionadas na “Ilíada”; a beleza sobre-humana de Galatéa, esculpida em mármore, que ganhava vida quando acariciada por seu criador; a figura de Golem, o homem de barro a quem um rabino soprou um hálito de vida através da palavra; ou o pequeno boneco de madeira esculpido pelo velho Gepetto para substituir o filho que ele não podia ter.

Enquanto essas criaturas são animadas através de um “sopro divino” ou de procedimentos mágicos, o romance de ficção “Frankenstein, ou o Moderno Prometeu” (1818), de Mary Shelley, é o primeiro em que uma criatura é animada por procedimentos científicos. O galvanismo, por exemplo, era uma tese discutida na época e foi utilizada por Shelley para dar vida ao monstro 1.

Essa estratégia mostrou ser bastante eficiente. A ficção criada por Shelley, além de ficar mundialmente famosa, deu origem ao desenvolvimento de outros Frankensteins em diversos contextos. Isso significa que, apesar da promessa de autodestruição, sabemos que Frankenstein teve muitos “descendentes” 2.

Partindo da hipótese de que é possível criar algum tipo de vida por meios não naturais, diversos experimentos científicos vêm construindo seres artificiais que possuem propriedades da “vida natural”. Segundo um consenso científico corrente 3, isso se traduz em seres que possuem propriedades de se auto-organizar, evoluir, reproduzir-se e se adaptar em uma diversidade de meios.

 

A-Life: bem-vindo ao universo de criaturas virtuais e vírus inteligentes

De todas as criaturas artificiais já implementadas, seguramente nossos semelhantes mais distantes (i.é, mais distantes de um modelo natural) são as novas categorias de organismos geradas a partir de “bits” computacionais.

Na tela de um computador pode-se ver hoje populações de seres virtuais nascerem, cooperarem e até construírem ecossistemas. Um exemplo desse tipo são os terríveis vírus informáticos, capazes de se reproduzir, mutar, de se proteger contra qualquer iniciativa de erradicação, ou as estranhas, porém simpáticas criaturas de jogos computacionais, como os Norms em “Creature”, os peixes tropicais de “Aquazone” e os “humanos” de “The Sims”, que poderiam ser facilmente considerados “vivos” se encontrados na natureza 4.

A origem da vida artificial no computador é freqüentemente associada a investigações de pioneiros da ciência da computação. Em 1954, John von Newmann, inspirado nas idéias de Alan Turing 5, especula sobre a imitação artificial de vida em dois experimentos hipotéticos em que máquinas matemáticas poderiam emular (ou replicar) qualquer outra máquina ao infinito.

No primeiro experimento imaginado por von Newmann um robô habita um lago repleto de artefatos mecânicos. Esse robô é um construtor universal. A partir de um manual de instruções, ele pode juntar as partes apropriadas e construir qualquer máquina, inclusive réplicas de si próprio. As novas máquinas hipotéticas também podem construir outras máquinas ou cópias delas mesmas. Além das cópias, pequenas alterações arbitrárias estão previstas no modus operandi dessa “fábrica” imaginária. Essas alterações servem para causar mutações nas réplicas, dentro de uma idéia de processo evolutivo, em que máquinas matrizes originam outras mais complexas.

O segundo experimento, nomeado por von Newmann de “autômato celular”, é um modelo matemático dessa fábrica imaginária, isto é, um equivalente lógico-formal do robô construtor 6.

A implementação que se tornou um exemplo clássico das idéias de von Newmann é o “Game of Life”. Criado pelo matemático John Horton Conway, em fins dos anos 60, e implementado em computador por William Gosper e equipe (MIT), nesse jogo o processo de aplicação recursiva das regras faz emergir padrões repetitivos que se parecem com objetos animados que viajam através de um tabuleiro 7.

O estabelecimento desse tipo de vida como uma área de pesquisa ou disciplina só ocorreu em setembro de 1987, por ocasião da 1a Conferência Mundial sobre Vida Artificial (A-Life), na cidade de Los Alamos, Novo México. Organizada por Christopher Langton, nessa conferência chegou-se a um consenso sobre o que é vida artificial. Um organismo artificial é qualificado como “vivo” se possuir as seguintes capacidades: (1) evoluir a partir de uma idéia de seleção natural; (2) ter um programa com instruções para operar e reproduzir; (3) desenvolver complexidade 8; (4) engendrar auto-organização.

A instalação interativa “Galápagos” 9, do biólogo e artista Karl Sims, é um exemplo atual de instanciação dessa formulação. Exibida de 1977 a 2000, no ICC de Tóquio, essa obra permitia ao visitante controlar a evolução de organismos virtuais, selecionando (isto é, permanecendo sobre sensores de pé, instalados na frente de monitores de computador) os organismos que lhe pareciam ser mais interessantes do ponto de vista estético. Como resultado, os organismos não selecionados eram removidos, enquanto os organismos selecionados sobreviviam, acasalavam, mutavam e se reproduziam.

Se os organismos virtuais produzidos pelo “Game of Life” ou pelo projeto “Galápagos” podem ou não ser considerados “vivos” é objeto de debate. Quando Christopher Lagton, pesquisador estrela da A-Life, foi questionado sobre ter visto alguma coisa viva na tela de seu computador, respondeu:

“Sim, mas saiba que aqui eu deixo o terreno científico. Essa foi somente uma reação intuitiva e neurobiológica de minha parte. Enquanto estudante, eu trabalhava tarde da noite no laboratório de informática de um hospital. Em um dos computadores rodava uma versão do ‘Jogo da vida’. De repente, eu tive a impressão de uma presença. Eu estava certo de que um de meus amigos estava prestes a me surpreender. Mas nada. Eu também imaginei que um dos animais do laboratório havia saído de sua jaula. Também não. Nesse momento, eu me virei na direção da tela do computador e vi um padrão estranho sair do ‘Jogo da Vida’. E eu soube que ele era a presença. Uma vez mais, isso não era racional, mas esta experiência sem dúvida selou definitivamente meu interesse pela vida artificial" 10.

 

Robôs: eles e nós

Basta olhar ao redor para saber que a vida artificial não se limita às telas do computador. Outro campo de pesquisa onde ela prolifera é a robótica, que promete povoar o ambiente em que vivemos com robôs autônomos de formatos variados como humanóides, bichinhos de estimação, insetos e nanopoeiras.

O termo “robô”, que define uma máquina ou mecanismo programável desenhado para desempenhar (de forma similar ao homem) tarefas complexas como andar e falar, tem origem nas palavras checas “robota” e “robotinik”, que significam respectivamente trabalho forçado e servo.

O termo foi cunhado em 1920 pelo escritor checo Karel Capek 11 na peça teatral “R.U.R”. Na trama idealizada por Capek, R.U.R. (Rossum’s Universal Robots) é uma indústria especializada na construção de “escravos artificiais”, capazes de substituir o homem em trabalhos pouco interessantes. Construídos em larga escala e providos de inteligência, esses artefatos não tardam a superar seus mestres, o que os qualifica a atuar em ambientes hostis, por exemplo, como soldados em situação de guerra. Na peça, essa missão revolta os autômatos e eles se insurgem contra seus mestres, a raça humana.

O conceito de robôs humanóides já existia antes do escritor tcheco inventar a palavra. Leonardo da Vinci, em seus estudos sobre a anatomia humana, projetou o equivalente mecânico de um homem. No séc. XVII, trabalhadores japoneses criaram um autômato (“karakuri”) capaz de servir chá. Outro exemplo de criatura mecânica é o famoso pato de Jacques de Vaucanson (séc. XVIII). Esse artefato ficou conhecido pela articulação realista de partes de seu corpo, por comer, digerir e defecar automaticamente.

Vaucanson construiu ainda três outras criaturas humanóides: um tocador de mandolim que batia o pé, um pianista que simulava respirar e movia a cabeça e um flautista. Esses trabalhos inspiraram outros. Pierre Jacquet-Droz e Henri-Louis, por exemplo, construíram uma criatura que simulava respirar e olhar para a audiência, para suas mãos e para a pauta musical enquanto tocava um órgão. Henri Maillardet construiu um autômato capaz de escrever em inglês e francês e desenhar uma variedade de “landscapes”.

Apesar da complexidade mecânica, esses primeiros autômatos, diferentes dos personagens de “R.U.R”, não podiam pensar, criar ou reagir; eles simplesmente desempenhavam tarefas com a precisão de um relógio suíço.

A robótica só atingiu o atual estado de desenvolvimento com a chegada da computação e da inteligência artificial, que possibilitaram incluir algum tipo de “cérebro” nos robôs. O primeiro passo nessa direção ocorreu em 1950, quando Alan Turing, no artigo “Computing machinery and intelligence”, propõe uma definição operacional de pensamento. Seu experimento, “Imitation Game” (que ficou conhecido como Teste de Turing), sugere que no lugar de perguntarmos se uma máquina pode pensar, devemos verificar se ela é capaz de passar em um teste de inteligência. Nesse teste, uma máquina é considerada inteligente se não existir diferença entre a sua conversação e a de um humano 12.

O desafio para construir máquinas capazes de simular o comportamento cognitivo humano foi encarado por John McCarthy e Marvin Minsky ainda na mesma década. No final dos anos 50 esses cientistas fundaram o Artificial Intelligence Laboratory do MIT, o primeiro laboratório dedicado à construção de robôs e ao estudo da inteligência humana -já que entender como a mente funciona é uma parte-chave do problema que é simulá-la.

Essa história teve ciclos de sucessos e fracassos. O plano de construção de máquinas que possuem inteligência artificial se enquadra em duas abordagens principais: “AI weak” e “AI strong”. A última argumenta que máquinas inteligentes podem ser conscientes, enquanto a primeira não sustenta esse argumento. Esse é o estado das pesquisas. Mas como isso se traduz em robôs?

Muitos roboticistas têm construído máquinas programadas de forma esperta, mas sem “consciência”. Um exemplo atual do estado das pesquisas em robôs humanóides é o Honda P3. O P3 possui a aparência antropomórfica de um astronauta, pesa 130 kg, mede 1m60 e desempenha tarefas como caminhar em dois pés, subir escadas, abrir portas e fechá-las de forma quase humana. Apesar do P3 não ser ainda totalmente autônomo (seu comportamento foi passo a passo exaustivamente programado), suas qualidades possibilitaram-lhe assumir a função de recepcionista da IBM, ganhando o invejável salário de US$ 180 mil dólares ao ano.

Além dos humanóides (que já tiram nossos empregos e supõe-se irão nos destruir), uma outra abordagem que está tirando o sono de muita gente é o projeto “Smart Dust”. Desenvolvido pelo engenheiro Kris Pister e equipe, na Universidade da Califórnia (UC Berkeley), essa pesquisa visa à criação de robôs muito simples, mas minúsculos (cerca de 1 milímetro cúbico a unidade). Combinados aos milhares em um único “network”, eles poderão ser capazes de fazer coisas extraordinárias.

Na visão otimista, a lista de vantagens de uso dos robôs superpequenos inclui desde a transformação de todo o ambiente em um robô invisível, até sua introjeção em um corpo humano, o que poderia expandir nossos sentidos e acrescentar poder de força ao nosso sistema imunológico.

As previsões sobre a evolução dos robôs superpequenos, contudo, não são sempre otimistas. Na obra de ficção “The Diamond Age”, de Neal Stephenson, essa tecnologia prevê tempos terríveis para a raça humana 13. Na visão do autor, nuvens de máquinas minúsculas, chamadas “toners”, iniciariam uma guerra aérea e se espalhariam como uma poeira preta. No ambiente, como caspas sobre os ombros das pessoas, elas monitorariam seus movimentos a serviço de grupos poderosos, corporações ou indivíduos maliciosos. Injetadas na corrente sanguínea de um indivíduo, as pequenas engenhocas poderiam destruí-lo a partir de um simples sinal de rádio tele-operado por um executor.

Para o bem ou para o mal, a maior parte das tecnologias correntes são ainda externas aos nossos corpos (e.g., celulares, laptops, agendas eletrônicas). Esse estado, no entanto, começa a mudar. Em casos dramáticos, como em deficiências e outros problemas clínicos, dispositivos externos estão sendo implantados internamente (e.g., implantes de cóclea, de olhos biônicos etc.). Supondo-se que as tecnologias intrusivas se tornem mais rotineiras, uma questão que se coloca é se nós iremos utilizá-las também para expandir os limites de nossos corpos.

Para o roboticista inglês Kevin Warwick não restará outra alternativa. Atualmente a inteligência humana supera a inteligência robótica, mas isso começa a mudar. Considerando o ritmo dos avanços tecnológicos, nos próximos anos os robôs serão mais inteligentes e poderosos do que os humanos, o que pode significar que viveremos em um mundo R.U.R, dominado por robôs.

Para o pesquisador, uma solução será expandir as capacidades de nossos corpos, transformando-nos em ciborgues 1. Kevin Warwick já faz experiências nessa direção. Em 14 de março de 2002 ele se submeteu a uma cirurgia para implantar uma interface eletrônica diretamente no seu sistema nervoso, o que lhe possibilita interagir de forma mais íntima e imediata com computadores e seres humanos 2.

Nas previsões e nos métodos Warwick não está sozinho. Analisando as tendências da evolução tecnológica, o diretor do Artificial Intelligency Laboratory do MIT, Rodney Brooks, em seu livro “Flesh and Machines” sugere que em meados do séc. XXI tanto robôs quanto humanos terão inevitavelmente outra natureza:

“Em meados do século 21 os robôs terão componentes de silicone, de aço, de titânio, talvez até algum arsenieto de gálio, e certamente uma variedade de outros materiais e supercondutores, e polímeros, e estruturas que dificilmente podemos imaginar. Nossos corpos também conterão todas essas tecnologias. Mas nós e nossos robôs estaremos também repletos de novos tipos de tecnologias –manipulações biotecnológicas... Estamos a caminho de mudar profundamente nosso genoma. Não melhorias na direção do humano ideal, como se teme. Na realidade, nós teremos o poder de manipular nossos corpos como manipulamos atualmente o design das máquinas... Não há porque se preocupar com meros robôs nos ultrapassando. Nós ultrapassaremos a nós mesmos com projetos de manipulação de corpos e com capacidades que facilmente poderão se igualar à de qualquer robô. A distinção entre nós e os robôs irá desaparecer” 3.

 

Hello Dolly!

Um modo de criação de vida artificial que tem gerado muita polêmica é o clone. Em sua etimologia, “clone” vem da palavra grega “klon”, que significa broto de vegetal.

A clonagem é o processo de reprodução de vida originada de outra, um fenômeno de divisão celular encontrado na natureza em animais invertebrados, nas plantas e na criação de gêmeos univitelinos. Clone é, portanto, a denominação que se dá ao grupo de organismos ou outra matéria viva que possui o mesmo patrimônio genético de um outro.

Da conhecida divisão celular, encontrada na natureza, cientistas sempre estiveram curiosos e intrigados com a possibilidade de clonar organismos mais complexos.

Embasados nas pesquisas sobre a separação artificial de células de embriões do alemão Hans Spemann 4, em 1952 os biologistas americanos Robert Briggs e Thomas King, na Filadélfia, desenvolveram um método artificial de divisão celular chamado transplantação nuclear ou transferência de núcleo celular.

Em seus experimentos, Briggs e King removeram o núcleo 5 de uma célula embrionária de um organismo e transplantaram-no em um óvulo não fecundado de um outro organismo da mesma espécie. Acomodado em uma incubadora nutriente, o óvulo transplantado dividiu-se e cresceu, o que fez nascer o primeiro clone de um embrião de sapo, um girino. Briggs e King se utilizaram apenas de células embrionárias, porque elas ainda não são especializadas e são capazes de desenvolver um organismo inteiro.

Experimentos com células especializadas adultas foram desenvolvidos entre os anos 60 e 70, entre outros, pelo biologista molecular John Gurdon, na Inglaterra. Gurdon em seus experimentos explora a possibilidade de transformar células especializadas adultas em células totipotentes, ou seja, células capazes de desenvolver um organismo completo. Ele utilizou o núcleo de células do intestino de girinos e, após transferi-lo para células sem núcleo, produziu clones de sapos. As experiências subsequentes com animais vertebrados, entretanto, foram frustrantes e os poucos animais que nasceram, não sobreviveram à idade adulta.

O primeiro sucesso na transplantação nuclear de um mamífero é o que gerou, em 1996, Dolly, a ovelha clonada a partir de uma célula adulta, ou uma célula diferenciada. Nesse experimento, o embriologista escocês Ian Wilmut, do Instituto Roslin, em Edimburgo, isolou o núcleo de uma célula mamária de uma ovelha adulta e, através de cultura in vitro, essa célula voltou a ter as mesmas características de uma célula embrionária.

Em laboratório, a nova célula embrionária foi inserida em um óvulo não fertilizado de uma outra ovelha, que começou a se comportar como um óvulo recém-fecundado por um espermatozóide. O passo seguinte foi inserir esse óvulo no útero de uma ovelha da raça Scottish Blackface, o que deu origem a Dolly, um filhote branco idêntico ao doador original, ou seja, com o DNA herdado da ovelha branca da raça Finn Dorset.

Wilmut explica o nome da ovelha, relacionando-o com o da cantora americana de música country: “Nós não poderíamos ter pensado em ninguém com um conjunto tão impressionante de glândulas mamárias como Dolly Parton” 6.

Com a experiência de Dolly parecia abrir-se um caminho concreto para a clonagem humana e cientistas acreditaram que esse seria um método facilmente aplicável a pessoas que não podem reproduzir. Além de se tornar capa de revistas famosas, a febre gerada por Dolly fez surgirem idéias fantásticas sobre a possibilidade de se gerar bebês sem defeitos e mais saudáveis, seres superiores e mais inteligentes. Idéias mais fantásticas ainda foram as de clonar Jesus Cristo a partir de amostra de sangue do Santo Sudário, ou múmias intactas. Era cedo demais e os problemas logo surgiram.

Desde o nascimento de Dolly, questões éticas e políticas sobre a possibilidade de clonagem humana têm reacendido inflamados debates por parte da sociedade, das igrejas e dos próprios cientistas. Dois dias após ter sido anunciada a clonagem de Dolly, em fevereiro de 1997, o presidente Clinton organizou uma comissão nacional de bioética para discutir as implicações da clonagem, e nos Estados Unidos, assim como na maioria dos países ocidentais, a clonagem de embriões humanos está até hoje oficialmente proibida.

Apesar das proibições legais, em abril de 2002 a revista “New Scientist” publicou a notícia de que o médico italiano Severino Antinori havia clonado um embrião humano com finalidade reprodutiva e sua gestação já estaria com oito semanas. O argumento de Antinori e colegas pró-clonagem-humana é de que tal procedimento não apresenta riscos, face à possibilidade de se examinar padrões epigenéticos anormais em embriões pré e pós-implantação.

Entretanto, a bombástica notícia do nascimento do primeiro clone humano foi divulgada em 26 de dezembro de 2002 pela presidente da Clonaid 7, a “bispa” raeliana 8 Brigitte Boisselier. Segundo Boisselier, doutora em física e química biomolecular, a menina clone, chamada Eve (Eva), seria a cópia de sua mãe, uma americana de 31 anos.

Como divulgou a Clonaid, Eve foi gerada a partir dos mesmos procedimentos utilizados para produzir a ovelha Dolly. Outras informações técnico-científicas não foram divulgadas. Até janeiro de 2003, por exemplo, a Clonaid não apresentou comprovação da identidade entre o DNA da mulher clonada e o da criança-clone. Quanto há de científico ou de picaretagem é ainda difícil de saber.

Verdadeira ou falsa, a notícia da clonagem humana reascende o debate sobre os riscos que um bebê-clone pode sofrer. Cientistas avessos à clonagem humana, por exemplo, duvidam da segurança dos atuais experimentos. A morte dos muitos embriões clonados aponta para problemas na eficiência do método atual de clonagem: mostra que os especialistas parecem não conhecer todo o funcionamento de genes durante o desenvolvimento do embrião, sendo ainda incapazes de controlá-los artificialmente.

Questões sobre a eficácia da célula tronco (diferenciada ou adulta) vêm sendo testadas pela comunidade científica. Em passado recente, acreditava-se que essa era uma célula “curinga”, capaz de assumir as funções de qualquer tecido animal. Em março de 2002, sua pluripotência foi questionada pelo cientista japonês Naohiro Terada, da Universidade da Flórida, através de um experimento onde ele verifica que as células tronco simplesmente haviam se fundido com células embrionárias.

Além disso, animais clonados nasceram maiores que filhotes normais, apresentam problemas de velhice precoce, defeitos no pulmão, coração e fígado. Em fevereiro de 2003, complicações decorrentes de velhice precoce fizeram com que Dolly fosse sacrificada. Novamente os cientistas explicam que, até agora, não se sabe exatamente se a reprogramação da célula diferenciada é perfeita ou não.

Enquanto os debates acontecem principalmente por causa das atuais limitações científicas e tecnológicas 9, uma brecha parece animar pesquisadores das áreas farmacológica, biológica, médica etc. Segundo esses cientistas, será um tempo de novas drogas e de uma alimentação mais nutritiva, desenvolvida por meio de clonagem de animais e plantas.

Com a concretização de Dolly e com a soma de novas informações que essa e outras experiências de clonagem vêm acumulando, especialistas em medicina genética já vêm trabalhando em torno de um novo paradigma: em vez de clonar novas criaturas, eles querem transformar as atuais em seres perfeitos, através, por exemplo, da medicina regenerativa. Recupera-se a idéia de pessoas livres de defeitos congênitos, de problemas de degeneração ou acidentes, e de doenças.

Em dezembro de 1998, na Inglaterra, por exemplo, o Conselho de Fertilização e Embriologia Humana e a Comissão de Conselho de Genética Humana liberaram a pesquisa com embriões humanos, mas recomendaram que ela deve se restringir aos propósitos de correção de doenças geneticamente adquiridas e ao desenvolvimento de novos tratamentos para órgãos e tecidos danificados (isto é, na medicina regenerativa).

Isso significa que, mesmo com os riscos, os debates éticos, as proibições e as previsões assustadoras que essa pesquisa vem suscitando (a possibilidade de geração artificial de exércitos, ou o espectro de uma eugenia), o campo mais promissor parece ser o da clonagem terapêutica, que visa a utilização do material genético de células de pacientes para criar células que reparem ou reconstituam outras que não funcionam ou estão doentes, propondo alternativas de tratamento para várias doenças.

Apesar da pesquisa científica não estar ainda oficialmente e comprovadamente em um estágio de criação de vida humana artificial, seu atual estado caminha para um futuro inevitável, em que o homem terá um entendimento maior sobre a vida e habilidade suficiente para sua manipulação.

 

Parabéns: é um híbrido!

O século XXI assiste a infiltração da vida artificial em nosso ambiente. A barreira da clonagem foi ultrapassada. O homem já pode criar seres biológicos de forma artificial. Outras formas de vida artificial, robôs e criaturas informacionais também já são uma realidade.

O próximo passo? Tudo indica que iremos integrar essas tecnologias dentro de nossos corpos, ou seja, os herdeiros de Frankenstein serão seres híbridos, misturas biotecnológicas, criaturas sintéticas e outras nem tanto.

Não se trata mais de ficção. A arte transgenética de Eduardo Kac já exibe alguns deles. “Alba”, criada em 2000, é uma coelha transgênica fluorescente verde, resultado da inserção em seus genes da proteína GPF K-9 (“Green Fluorescent Protein”), isolada de uma das mais antigas e resistentes amebas do Oceano Pacífico, Aequorea Victoria, que emite uma luz verde brilhante quando exposta à luz UV ou luz azul 10.

E ela não é única. Na instalação “The Eighth Day” (2000-2001), o artista dá um passo além. Ele simula todo um sistema ecológico artificial que agrega formas de vida transgenéticas e um “biobot” (um robô que possui um elemento biológico ativo, isto é, uma colônia de amebas-GFP que atuam como células cerebrais).

Fechado em um domo de vidro (plexiglas) de 1m20 de diâmetro, esse “estranho mundo novo” possibilita visualizar criaturas bioluminiscentes como plantas, amebas, peixes e ratos. Como a coelha Alba, esses organismos sofreram alterações em seu código genético, através da introdução do gene responsável pela produção da proteína verde fluorescente 1. Pela Internet, o usuário remoto pode imergir nesse ecossistema transgênico através dos olhos do “biobot”. Resta ao interator imaginar o que acontecerá no caso do vidro se quebrar.

Como sugerem esses trabalhos as novas formas da vida artificial, seja lá o que forem, vieram para ficar e para mudar mais uma vez nossas vidas e nossa percepção de nós mesmos e do mundo. Victor Frankenstein fugiu de seu projeto luminoso, era um excesso científico. E nós, já estamos preparados para as novas criaturas?

 

 

1 - Shelley narra a história de um estudante de ciências naturais, Vitor Frankenstein, que descobre a fórmula de dar vida a um corpo inanimado. Victor constrói, com partes de cadáveres, um ser gigantesco e o anima através do galvanismo. Na época de Shelley, cientistas e médicos experimentavam e aplicavam a eletroterapia a partir da descoberta de que o nervo humano e animal podiam ser excitados eletricamente. A pesquisa trabalhava com a estimulação nervosa no tratamento de defeitos como cegueira e surdez e de doenças como paralisia, afasias e convulsões.

2 - Versões de Frankenstein são até hoje reimpressas, traduzidas, filmadas, interpretadas etc. No cinema, filmes dos descendentes de Frankenstein exploram a idéia de que ele não morreu. São aparições que têm assumido vários nomes e diferentes caracterizações. O primeiro filme de Frankenstein é de 1931, uma produção dos Estúdios Universais que pouco antes havia assombrado o mundo com “Drácula”, êxito comercial do gênero de horror. Esse filme lança Boris Karloff como ator de sucesso de filmes de terror, na pele do monstro. Em 1935 o cinema apresenta "A Noiva de Frankenstein", de James Whale, que começa com Mary Shelley contando ao grupo de Genebra que o monstro não morreu, narrando a continuação do primeiro filme. Numa seqüência de sucessos de bilheteria, aparece, ainda nos anos 30, o filme "O Filho de Frankenstein". Outras versões são a de 1958, "A Filha de Frankenstein" e a comédia "O Jovem Frankenstein", de 1974, sob a direção de Mel Brooks. Entre as versões recentes está a ficção de 1990, "Frankenstein Unbound (Frankenstein Livre)”, de Roger Corman, baseada na novela do mesmo nome, de 1973, escrita por Brian Aldiss. Na trilha do cinema de ficção, outro exemplo de vida artificial encarnada na figura humana são os replicantes de "Blade Runner", filme de 1982 onde andróides do futuro são criados pela Tyrell Corporation para ser "mais humanos que o humano".

3 - Tal esforço é interdisciplinar e abrange várias áreas do conhecimento, como a biologia, a química, a física, a engenharia e a ciência da computação, entre outras.

4 - “Creatures”, “Aquazone” e “The Sims” são jogos computacionais que simulam auto-organização, reprodução e comportamentos de seres vivos naturais. Nesses jogos, criaturas são programadas para “pensar” e “agir” por elas mesmas.

5 - A pesquisa de Turing, além da máquina universal, também se desenvolveu para uma vertente biológica. Em 1952 ele publica um artigo sobre morfogênese (um desenvolvimento matemático de formas biológicas). Margaret A. Bolden resume essa idéia de Turing: “Ele provou que processos químicos relativamente simples (descritos em termos matemáticos abstratos) poderiam gerar uma nova ordem a partir de tecidos homogêneos. Duas ou mais substâncias químicas propagando-se em diferentes velocidades poderiam produzir ‘ondas’ ou concentrações diferenciadas as quais, em um embrião ou em organismos em crescimento, poderiam mais tarde fornecer a repetição de estruturas tais como tentáculos, brotos ou segmentos” (Margaret A. Bolden. “The Philosophy of Artificial Life”. Nova York: Oxford University Press, 1996, p. 5).

6 - O autômato celular de von Newmann é basicamente um espaço matricial feito de muitas células e uma tabela de regras. As regras determinam como cada célula modifica seu estado, levando em consideração o estado das células vizinhas. No decorrer do processo, a estrutura celular original transforma as células vizinhas para o seu estado, i.e., a célula original se duplica na grade. Além disso, o sistema prevê pequenas modificações randômicas (mutações) que podem ser passadas às futuras gerações. Vale lembrar que 6 anos após a morte de von Newmann, dois pesquisadores americanos, Francis Crick e James Watson, revelaram a estrutura do DNA. Essa descoberta, que lhes valeu o Prêmio Nobel, possibilitou compreender como a reprodução opera em nível molecular. O dado surpreendente é que a lógica utilizada pela natureza se parece com a lógica do autômato celular descrito pelo matemático von Newmann.

7 - O jogo de Conway é uma simulação de processos da vida. Para jogá-lo, é necessário um tabuleiro como o de xadrez (assumindo-se que este é um plano infinito composto de células) e peças de 2 cores (ou organismos). Cada célula do tabuleiro tem 8 células vizinhas (4 ortogonalmente adjacentes e 4 diagonalmente adjacentes). Inicia-se o jogo com uma configuração simples de peças ocupando cada célula e, a seguir, aplica-se as regras genéticas de Conway. Essas regras são: (1) sobrevivência: cada peça com 2 ou 3 vizinhos sobrevive na próxima geração; (2) morte: cada peça com 4 ou mais vizinhos morre por super população e cada peça com 1 vizinho morre por isolamento; (3) nascimento: cada célula vazia adjacente a exatamente 3 vizinhos é uma célula nova, i.e., na próxima rodada será ocupada.

8 - Uma definição corrente de sistema complexo é a daquele cujas partes interagem com tal elaboração que o resultado não pode ser previsto por equações lineares, uma vez que o número de variáveis operando no sistema e o comportamento geral resultante só podem ser compreendidos como uma conseqüência emergente de uma miríade de comportamentos embutidos (Margaret A. Bolden. “The Philosophy of Artificial Life”. Nova York: Oxford University Press, 1996).

9 - Site: http://www.genarts.com/galapagos/

10 - Pierre-Yves Frei, “L’Hebdo”, 4 de janeiro, 1996, p. 36-37.

11 - Alguns autores sugerem que o real autor do termo foi Josef Capĕk, irmão de Karel. (Stuart J. Russell e Peter Norvig. “Artificial Intelligence: A Modern Approach, Nova Jersey: Prentice-Hall, Inc., 1995, p.810).

12 - Na formulação original, o Teste de Turing (ou “Imitation Game”, nome original sugerido por Turing) é um jogo onde um homem e uma mulher, localizados em diferentes salas, se comunicam com um interrogador por meio de um teletipo. O homem deve convencer o interrogador (respondendo às suas perguntas) de que é a mulher, enquanto ela tenta comunicar sua real identidade. Em um dado momento do teste o homem é substituído por uma máquina e se o interrogador não for capaz de distinguir aquele que é máquina daquele que é humano, então a máquina terá passado no teste, o que resultaria na idéia de que a máquina é inteligente. Versões atuais do Teste de Turing substituem a mulher por uma outra pessoa (homem ou mulher). Também as salas são substituídas por um único ambiente que contém ou uma pessoa ou uma máquina, e o interrogador deve determinar se ele está dialogando com uma pessoa real ou com um artefato (Alan Turing. “Computing Machinery and Intelligence”. “Mind” 59, 1950, pp. 433-460).

13 - Neal Stephenson. “The Diamond Age”, Nova York, Bantam Books, 1996.

14 - Ciborgue é um organismo cibernético, parte humano parte máquina.

15 - Site: http://www.rdg.ac.uk/KevinWarwick/Info/home.html

16 - Rodney A. Brooks. “Flesh and Machines: How Robots Will Change Us. Nova York: Pantheon Books, 2002) pp. 233-236.

17 - No início do século XX, o embriologista Hans Spemann (1869-1941) fez experiências com separação de células de embriões e ganhou, em 1935, o prêmio Nobel por suas pesquisas sobre o princípio organizador dessas células em seu desenvolvimento, mostrando que a célula embriônica retém a informação genética para criar um novo organismo, e propondo a possibilidade de um método de clonagem (The Official Web Site of The Nobel Foundation, 23 de julho de 2001).

18 - O núcleo é a estrutura celular que contém a maior parte do material genético e que controla o crescimento e o desenvolvimento do organismo.

19 - John Carey, “Bussines Week”, 10 de março, 1997, pp. 37-38.

20 - A Clonaid entra para a história como a primeira companhia de clonagem humana. Fundada em fevereiro de 1997, pelo ex-jornalista, Claude Vorilhon (conhecido como Raël) a companhia, conforme o site oficial (http://www.clonaid.com), destina-se a comercializar uma vasta gama de produtos que incluem: (1) Clonaid, produto para clonagem humana; (2) Insuraclone, kit genético de armazenamento de células humanas; (3) Ovulaid, serviço para escolha da aparência de um futuro bebê; (4) Clonapet, produto para clonagem de animais de estimação; (5) RMX2010, venda de fusão de células embriônicas.

21 - O movimento raeliano é uma organização religiosa de alcance internacional que prega que uma raça humana extraterrestre, denominada Elohim (nome extraído da Bíblia para representar a palavra Deus), utilizou-se de engenharia genética e DNA para criar vida na terra. O movimento também credita à raça Elohim e às suas técnicas de clonagem a ressurreição de Jesus. De acordo com Raël, líder da seita, o progresso das pesquisas em clonagem representa a chave para a vida eterna.

22 - Sobre o desenvolvimento e a reprogramação do gene e da segurança de se clonar seres humanos.

23 - Site: http://www.ekac.org/gfpbunny.html

 

Maria Teresa Santoro é pesquisadora em representações do corpo, doutora em comunicação e semiótica pela Universidade Técnica de Berlim e professora de comunicação e linguagem na Universidade São Judas Tadeu (SP).

Rejane Cantoni é artista e pesquisadora de sistemas de informação, doutora em comunicação e semiótica pela PUC (SP) e professora do departamento de Ciências da Computação da PUC (SP).