O Iglu


Estava tudo escuro. As pessoas dormiam. Só aquele monótono barulho do motor do avião tinha vida. Eu me cansei de jogar videogame e o pus na mesinha na minha frente.
Eles moram em iglus, como do museu no parque da minha cidade, ou dos desenhos da TV, das histórias de Natal. Vou morar em um iglu cercado de neve.
Da janela vi as nuvens e a lua.
É um lugar branco e gelado, sem árvore nem nada. Só água, gelo e céu. É frio e quieto lá e iglus são muito pequenos. Não vou ter um quarto, nem vai caber brinquedos. Tudo cheio de gelo e céu. Não vou andar de bicicleta. Vai ser legal?
Eu estava meio triste. Olhei para mãe, mas ela dormia também.
Ah! mas vou pescar um peixão, o maior que tiver. Patinar e descer montanha e deslizar na neve. Vai ser cool!
Aí mãe soltou um bocejo.
Mãe, eles moram em iglus?
Ela riu.
Não, querido, eles moram em casas normais. Iglus estão no Alaska, no Ártico. Não vamos pra lá.
Pena! Eu já gostava da ideia de morar em um iglu.
E então as casas foram aparecendo na janela e não eram iglus e o trem corria e eu não conseguia ver as casas direito e passava floresta e aparecia bosque e estação e vinha vilarejo e eu tentava olhar as casas e não conseguia e fiquei cansado desse filme maluco e desisti de olhar as casas.
Fui morar num apartamento na cidade, que não era uma casa, mas era grande e eu tinha um quarto e não era iglu, nem tinha neve. Pena!
Bom dia, senhora Dabia!
Era assim que começava minha vida na nova escola, todos os dias. No terceiro acompanhei o coro: 'Bom dia, senhora Dabia'. O resto eu não entendia. Eles falavam e eu olhava, falavam e eu olhava. Depois não dei mais bola e falava errado mesmo. A professora era legal. Ela falava comigo fazendo sinais, mostrando figuras.
O telefone não tocava como na minha casa. Mae e eu não tínhamos amigos.
Mas isso durou pouco. Eu passeava muito pra conhecer o lugar, ia ao shopping igual da minha cidade, ia a uns parques lindos, tinha lagoa e pato. Até castelo no meio. Ia pra museu, subia na torre de TV, tomava sorvete. Tinha uma feira das pulgas enorme no sábado e as festas de rua. Era uma cidade movimentada. Era divertido ver o que acontecia. Descobrir as coisas, correr no parque, levar pão pros patos. Até ajudar mãe com as sacolas do supermercado era divertido. A gente fazia tudo de metro, que era velho, sujo e tinha um cheiro esquisito. Mas era muito grande, parecia que não tinha fim.
Eu falava com mãe na nossa língua. Apontava coisas interessantes, perguntava, pedia coisas. Mãe dizia que eu era o maior pedinte que ela conheceu. Eu falava tudo em voz alta e isso ajudou a gente a conhecer as pessoas. Mãe não. Ela era quieta. Acho que tinha vergonha de falar errado. Mas depois de um tempo a gente tinha um monte de amigos.
Entrei no clube de pesca da cidade. Tinha encontro no fim de semana, fora da cidade, num grande lago. A gente aprendia a pescar e treinava o tempo todo, até com chuva. Isso era super! O chato era entrar na água cedinho, quando já era quase inverno. Nessa época eu falava a língua deles melhor e aprendi um monte de coisas interessantes sobre pescaria e peixes.
Um dia, cheguei em casa com um peixão enorme. Foi o maior que pesquei até hoje. Eu tava tão feliz com meu troféu e o peixe que levei ele vivo pra lá. Tinha uns amigos tomando café lá.
Sob protestos de mãe, pus o peixão na banheira. Ele voltou a nadar, todo imponente e feliz. Eu fiquei só curtindo meu peixe e minha vitória.
E os amigos vieram olhar meu peixão. Aí chegou o Sebastian, meu vizinho, e ele não acreditou que eu tinha pescado aquele peixe enorme. Tive que explicar pra ele. Todos conversavam sobre meu peixe e até mãe tava orgulhosa, mas ela desinfetou a banheira depois. Eu tinha um livro sobre peixes e mostrei a eles o tipo do meu peixe.
O peixe só nadava, feliz de ter plateia, mas mais feliz tava eu que me senti o herói do dia. Foi muito engraçado ver as pessoas tomando café no banheiro.
Nessa época eu já pedalava minha bicicleta novinha. Todo mundo andava de bici. Eu fazia miséria com a minha, mas mãe me fazia por capacete e joelheira. Fim de semana eu ia pedalar e fazer pic-nic no parque. Era o máximo.
Outra coisa muito legal naquele lugar era a feira de natal. Todinha iluminada, no meio da praça, uma maravilha. Um natal que eu ia de férias pro meu país, fomos comprar uns presentes lá e eu achei um bem bacana pro meu tio: era um hambúrguer igualzinho do McDonalds, perfeito, só que tinha um pedaço de coco de plástico no lugar da carne. Pus o hambúrguer numa linda caixa enfeitada. Na noite de natal, no maior suspense dei o sanduiche especial pro tio. Quando ele viu, ficou vermelho que nem um camarão. Pensei que ele ia me bater. Todo mundo chorava de rir. Aí, ele me pegou pelos pés, me virou de ponta cabeça e me chacoalhou. Depois tirou meu sapato e jogou da janela do apartamento da minha avó, do 11. andar. Mesmo vingado, ninguém parou de rir. Meus primos contam até hoje essa história. Foi um grande natal.
Nem tudo era festa na minha vida. Tivemos que mudar de casa. Eu mudei de escola também e nessa não tinha a senhora Dabia. Tinha problemas com umas matérias chatas e não entendia os cálculos. Por que eu tinha que saber aquilo tudo? Minhas notas despencaram, até que arrumamos um professor. Foi duro. Eu ficava muito cansado. Quando ia aprender aqueles cálculos e as outras coisas chatas? Mas o professor era legal e até comecei a gostar de umas matérias.
Mas o que eu gostava mesmo de fazer era desenhar e inventar coisas. Ventilador e misturador de cacau com peças do secador de cabelo velho de mãe, motor pra meu carro lego. Desenhar caricaturas engraçadas das pessoas.
Desde que me conheço por gente, mãe diz que eu sou meio estabanado e vivo tropeçando e pisando nos pés dela. Mas ela me ama mesmo assim.
...
Que surpresa achar esse texto entre os guardados. Estava arrumando fotos antigas e encontrei as folhas dobradas. O título do antigo trabalho escolar era “Aventuras de um Jovem Homem”.
Como um “jovem homem”, pensei em 1000 coisas que eu poderia contar da minha vida estrangeira, mas ninguém tem muito tempo. E por que alguém iria se interessar pelas coisas que um garoto faz? Garotos dessa idade só querem se meter, descobrir novidades, fazer coisas diferentes e se sentir heróis, como das histórias que eles leem ou veem nos filmes. Meninos são todos iguais. Eu sou igual. Só achei que ia morar num iglu. Uma ideia maluca. Nada como voar para Marte, encontrar um vilão extraterreno vermelho. Nada muito especial.
Morei nesse lugar muito, muito tempo, anos, e depois eu não me sentia mais estranho lá. Falava igual a eles, pensava igual e sonhava na língua deles. Um dia me olhei no espelho e tava até parecido com eles. Fiz um filme na minha cabeça de tudo que vi e conheci. Só não gostei de umas coisinhas que aconteceram e de algumas pessoas que conheci.
Uma vez, na escola, fui falar com um garoto e ele me disse 'verschwinden!' muito alto. Eu não sabia a palavra, mas entendi que era um palavrão e fiquei muito chateado. Cheguei em casa chorando, afinal eu não tinha feito nada pra ele me ofender. Mãe procurou no dicionário e encontrou 'suma! desapareça!'. Ela disse que o menino tava com algum problema e depois dela me consolar, me senti melhor, mas nunca mais falei com o menino. Mas isso foi no começo, quando eu ainda era muito estranho lá.
Depois voltei pra minha terra. Fiquei surpreso porque aí eu me sentia estranho na minha terra e na minha língua também. Eu tinha nascido e vivido no meu país tanto tempo. Quando voltei me sentia meio, meio um esquimó no meio deles. Vivi com essa sensação como uma sombra, nunca me acostumei a ser quem eu era antes. Sempre me senti meio, meio esquimó ali.
Hoje eu vivo naquela minha nova terra de antes, que não é mais nova pra mim e não moro em iglu, nem me sinto um esquimó, mas eu ainda gosto da ideia de morar em um iglu.