Cena de um Verão


Naquele dia quente de verão o Dr. Roberto saiu do consultório mais cedo do que de costume. Como não tinha mais pacientes para atender, queria aproveitar a tarde para nadar no clube.
Vou levar o Felipe comigo, afinal faltar um dia na escola não será um desastre. Ele vai adorar!
Ligou para casa e avisou a babá que iria buscar o menino. Que ela ligasse para a escola dizendo que Felipe iria faltar.
No carro escutava uma música da Gal Costa e a cantarolava junto, enquanto dirigia. O trânsito da sexta-feira estava infernal, lento e barulhento, mas Roberto fechou as janelas, ligou o ar-condicionado e aumentou o volume do rádio, recordando-se de um show da cantora que assistiu junto com sua mulher anos atrás.
Como será que está Marina? Pensou e se cobrou de não a visitar com mais frequência.
Vou vê-la com o Felipe no próximo fim de semana. É uma viagem longa, mas nós três poderemos fazer uma caminhada na floresta perto da comunidade hippie onde ela agora mora e posso conversar com o coordenador para saber sobre sua recuperação. Afinal, já se passou mais de um ano desde a internação e ela parece curada.
Quando foi a última vez em que Marina esteve na cidade para fazer o controle psiquiátrico? Perguntou-se Roberto, recordando-se da primeira crise da mulher.
O trânsito arrastava-se e a música escolhida já não ajudava a manter seu bom-humor.
Claro! Toda vez que pensava em Marina, sentia-se culpado pelo “affaire” que teve com a secretária da época. Tudo tinha sido rápido e desastroso para a família, principalmente para Marina e o pequeno Felipe, e por que não dizer para ele também.
Ela passou a persegui-lo desconfiada quando as coisas começaram a não mais funcionar direito entre eles. E quase chegou às vias de fato com a secretária - como era o nome dela? – não fosse ele chegar ao consultório na hora em que Marina apontava o abridor de cartas para a jovem morena de pernas longas.
Mas a jovem tinha um sorriso bonito e aquelas insinuantes pernas passeando incessantemente no meu campo de visão. Como eu podia resistir... e foi tão bom! Não que eu não mais amasse Marina, eu a amava loucamente, mas a morena me fez perder a cabeça!
Agora que se aproximava da rua de casa, Roberto espantou esses pensamentos, convencendo-se de que todos estavam bem, não como antes, mas estavam bem.
Estacionou o carro e entrou no elevador do prédio. Quando chegou ao hall do apartamento pode distinguir uma melodia que vinha de lá de dentro e que lhe provocou uma sensação estranha.
Não é nenhuma música de criança, nem a barulheira que a babá costuma escutar.
Atrapalhou-se com o molho de chaves, tentando encaixar a chave.
Essa música é... Quem a está cantando? Não pode ser a babá quem a pôs para tocar... Que bobagem minha! Ela deve ter mexido nos meus CDs.
Entretanto ele permaneceu em frente da porta por alguns instantes escutando.
Quando acertou a chave, Roberto sabia que quem estava na sala, sentada na velha poltrona azul perto da janela e escutava a música não era a babá. Era Marina.
Ele abriu a porta devagar e a pode ver de perfil. Ficou a observá-la, sentada na poltrona azul. Marina tinha os olhos cerrados. Talvez estivesse dormindo ou só curtindo a música, quem sabe?
Assim entregue ela lhe pareceu tão bonita que ele teve o ímpeto de dizer alguma coisa, de ir até onde ela estava e lhe dar um beijo, ao mesmo tempo em que sentiu medo dela.
Calma e dona de si ali estava ela, como nos velhos tempos em que os dois se sentavam nessa mesma sala depois do trabalho e, entre uma e outra taça de vinho, conversavam sobre o dia, sobre Felipe, ou só ficavam ouvindo as músicas deles.
Incapaz de qualquer movimento, Roberto permaneceu na soleira da porta. Em seu cérebro perpassavam imagens e pensamentos desencontrados, como uma sequência fílmica ainda sem edição. Por fim ele respirou fundo e Marina se mexeu.
Ela o fitou e foi como se um raio o atravessasse. Roberto sentiu que sua boca estava seca.
- Onde estão Felipe e a babá? Eles vão comigo ao clube.
- Olá Roberto! Você não vai me cumprimentar, nem me dar um beijo? Retrucou Marina com um sorriso maroto.
- Desculpe! Respondeu ele aproximando-se e lhe dando um beijo no rosto.
- Mas onde estão eles? Felipe! Felipe! Chamou, procurando afugentar uma incômoda sensação, enquanto caminhava em direção ao quarto do filho.
- Foram tomar um sorvete, eu lhes dei dinheiro. Quero conversar com você.
- Conversar? Nós já conversamos tudo, não? É sobre o Felipe? Sei que estou em falta com as visitas, mas eu ia ver você no fim de semana.
- Não é sobre nada disso!
- Você veio para a consulta? Mas hoje é sexta-feira e seu médico não atende nas sextas. Quando é a sua consulta?
- Não vim para nenhuma consulta. Vim ver você e o Felipe. Tenho saudades de tudo aqui. Principalmente da família. Já faz tanto tempo!
- Como assim? Mas quando é a sua consulta? Você está bem? Eu tinha programado levar o Felipe ao clube...
- Por que você não se senta e relaxa! Eu só quero conversar sobre... sobre a minha volta! Marina falou, apertando uma mão na outra.
- Pelo amor de Deus, Marina, nós conversamos mil vezes sobre isso e agora você tem um namorado.
- Acabei com ele! Quero voltar para casa. Já pensei em tudo. Acho que volto a lecionar, o que você acha? Ela disse, interrogando com o olhar Roberto, enquanto exibia um sorriso amarelo.
A conversa estava ficando tensa e Roberto procurou contemporizar. De nada adianta essa discussão, ele refletiu.
- Primeiro a sua consulta e se estiver tudo bem, podemos conversar sobre isso, pode ser?
- Eu não quero saber de mais consultas. Estou curada há muito tempo, como os médicos disseram. Não estou louca, não agredi mais ninguém. E quero ter minha vida de volta. Ou você está com um caso novo? Disse ela em um tom mais alto.
- Não é nada disso! Eu só quero o melhor para nós todos, para você e o Felipe. Apaziguou Roberto.
- O melhor para o Felipe e para mim é a família. Nós três juntos novamente. Eu te perdoei, não foi?... Não foi?
- Sim, sim, fique calma! Vou buscar uma cerveja, você quer alguma coisa?
- Uma cerveja está bom!
Roberto foi à cozinha, pensando em como resolver o impasse. Marina não podia continuar ali. A proposta dela de eles voltarem a morar juntos, a tensão que isso criava, sua presença o estavam desestabilizando. Ele precisava tirá-la de casa sem confronto nem briga.
Com as cervejas e os copos ele voltou para a sala. Tudo estava silencioso. A música terminara e ela continuava sentada na poltrona azul com os olhos fechados.
Ao perceber sua presença, Marina encarou-o. Era um olhar gélido e sem expressão. Por alguns instantes Roberto teve a sensação de que não poderia mexer nenhum membro, como se estivesse paralisado. No momento seguinte disfarçou e, servindo as cervejas, perguntou pelos amigos da comunidade.
- Não estou com vontade de falar sobre isso.
- Aconteceu alguma coisa lá? Alguém brigou com você?
- Não aconteceu nada. Não vim até aqui para falar deles, mas de nós.
-Mas Marina, não há muito que conversar sobre nós. Você tem uma vida lá, os amigos, o coral que você adora e eu continuo com a minha.
- Eu sabia! Você está de caso novo, refez sua vida e não me quer mais por perto, não é?
Impaciente, Roberto sentou-se no sofá e pôs a cabeça entre as mãos. A conversa não evoluía, ele não estava sendo convincente e isso o irritava.
Onde foram a babá com o filho que não voltam? Pensou.
Ele tinha que fazer alguma coisa, tomar uma atitude para tirar a mulher dali, mas nada lhe ocorria.
Sentia raiva, mas controlou-se quando olhou para Marina, que agora tinha os olhos cheios de lágrimas.
Pensou em ligar para o médico dela, mas não se lembrava onde havia deixado o cartão dele. Talvez devesse ligar para o coordenador da comunidade. Ele poderia convencer Marina a voltar?
Cabisbaixa, Marina se levantou e disse que ia ao banheiro. As lágrimas inundavam seu rosto.
Quando ela saiu da sala, Roberto ligou para a babá e mandou que ela voltasse com o filho. Depois procurou o número do médico de Marina, mas só achou o do consultório que não mais atendia. Estava teclando o número da comunidade onde ela morava quando percebeu que Marina estava atrás dele.
Ela tinha um rosto tranquilo e sereno, não mais chorava e, aproximando-se dele, deu-lhe um longo beijo.
- Vou embora. Vir aqui foi um erro e não quero mais tomar seu tempo. Talvez você ainda consiga ir ao clube com o Felipe. Está tão quente e um fim de tarde bonito.
Roberto respirou. Assim que ela saísse tudo voltaria à tranquilidade e à rotina. Ele continuaria sendo o respeitado médico de sempre, encontraria seus amigos nos fins de semana, acompanharia o crescimento do filho e continuaria a ser um homem livre como sempre quis. Ele não precisava de mais nada.
Graças a ele, a ex-mulher tinha uma vida confortável, restabelecera-se e estava integrada em sua comunidade.
O filho também estava feliz. Depois da crise, recuperou suas notas, ia bem na escola e tinha seus amigos.
Sim, tudo voltaria à normalidade dentro de alguns minutos.
- Vou chamar um taxi pra levar você até a estação. Você precisa de dinheiro? Acha que encontrará passagem a tempo?
- Não se preocupe! Tenho dinheiro comigo.
Roberto então discou o número do taxi e se virou para perguntar alguma coisa a ela.
Viu então o que ela tinha nas mãos: o revólver que ele havia comprado depois que a casa onde moraram fora assaltada.
Há anos ele não se lembrava da arma. Onde ela a encontrara? Era o mesmo revólver? Estava carregado?
- Por favor, Marina, calma! Dê-me essa arma e vamos conversar. Você está curada e não vai se descontrolar nunca mais. Por favor, querida, vamos conversar!
- Agora você quer conversar! Há alguns minutos disse que nós já havíamos conversado tudo. Mentiroso! Traidor!
- Marina, abaixe esse revólver! Você está me assustando. Não transforme tudo numa tragédia! Por favor!
A explosão foi seca e curta. Um som surdo que se misturou com o barulho do filho e da babá batendo a porta dos fundos.