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Monday
Dec072020

Vida e Ficção

POR MARIA TERESA SANTORO DÖRRENBERG
2020

O que ocorre entre o mundo real e o mundo da ficção quando alguém percebe algo, ou seja, quando vê, ouve ou lê uma notícia, um livro, um conto de fada, ou uma outra narrativa? Ou quando alguém conversa com outra(s) pessoa(s)? O que acontece quando se misturam os papéis e se consideram reais, personagens fictícias e vice-versa?

Quando uma experiência da realidade sensível é apreendida, isto é, quando ela é percebida na consciência, seja a consciência racional, a emocional ou ambas, normalmente ela gera uma resposta, uma interpretação de como a experiência foi ou é percebida e entendida. Afinal, ninguém vive no presente imediato. Somos compelidos a construir uma explicação para tudo o que experimentamos. Isso significa que temos a tendência a organizar o que percebemos do mundo, isto é, coordenamos o que o mundo nos apresenta, a fim de entendê-lo. O viver no mundo também significa ser lido e interpretado por outros.

Somos leitores do mundo. Assim, ler o mundo sensível torna-se um exercício a que todos nós estamos sujeitos ao longo da vida. Podemos extrapolar e dizer que lemos a vida como uma ficção. Isso quer dizer que toda re-presentação passa a ser uma segunda apresentação da realidade, uma fantasia, interpretação ou ficção.

Uma comparação possível que pode esclarecer o que queremos dizer é a da história de Perseu, na mitologia grega. Perseu (filho ilegítimo do rei Akrisius com a filha Danaei) tem uma missão: para proteger sua mãe da ira do rei, ele deve matar e trazer a cabeça da terrível Medusa, sob perigo de olhar para a górgona com cabelos de serpentes e virar pedra, que é a maldição da Medusa. Mediado por um espelho, Perseu olha a Medusa adormecida através de seu reflexo, ou seja, através da representação dela no espelho, aproxima-se então do monstro adormecido e corta-lhe a cabeça, sem precisar olhar diretamente para o monstro.

Na metáfora do espelho temos a diferença entre olhar diretamente o mundo sensível e “transformar-se em pedra”, ou olhar o mundo através de seu rebatimento no espelho, sua representação, e sobreviver.

Por que interpretamos tudo o que acontece?

Porque o mundo sensível e real só pode ser percebido se o representamos visual, sonora ou verbalmente. Ao captamos algo, imediata e incontrolavelmente fazemos uma interpretação do que foi apreendido.

Muitas vezes, a realidade nos assalta e assusta, como nas catástrofes naturais, políticas e sociais, nas doenças, epidemias, pandemias e outros conflitos. Esses momentos nos perturbam, gerando a interpretação de que, às vezes, a vida nos pode parecer traiçoeira, como constatou o artista espanhol Francisco de Goya, na série de gravuras Caprichos, “El soño de la razon produce monstuos” (O sonho da razão produz monstros), editado em 1799. E Goya tinha inúmeras razões para essa afirmação, se considerarmos o mundo que o cercava: a Espanha medieval, mergulhada em corrupção, ignorância e na santa inquisição.

Uma pérfida realidade recentemente nos assaltou sem aviso, sem preparação ou compreensão.

De repente surgiu uma epidemia que logo se transformou em pandemia e virou o mundo do avesso. Diante da realidade de um vírus pairando no ar que respiramos, experimentamos o tumulto e a ameaça que o vírus representa, ou seja, é um vírus que se alastra, contamina e mata. Essa constatação está presente na representação do vírus: no doente e seus sintomas. Sem aviso prévio, fomos mergulhados na terrível e mortal realidade das múltiplas representações do vírus corona e em suas interpretações.

O que configura uma pandemia, ou qualquer situação de doença e ameaça, é a leitura de que se trata de um inimigo contra o qual precisamos lutar e vencer para sermos restituídos à normalidade da existência. Podemos comparar a situação de doença com a de uma guerra, que começa dentro de nós mesmos na atuação de nosso sistema imunológico. A guerra, o inimigo são as metáforas da ameaça que a doença apresenta.

Nesse contexto, a doença é uma desordem porque nos impede de continuar nossas atividades cotidianas, provoca sintomas indesejáveis (dor, febre, mal-estar etc.), limita-nos e, em casos de complicações mais graves, pode matar.

No outro lado desse paradigma está a saúde e a ordem, um bem que quase todos herdam. E quando somos surpreendidos pela indesejada desordem da doença temos o médico, o enfermeiro, o hospital e o remédio, entre outros, como sinônimos de restituição da saúde, da ordem, da cura, do bem-estar e da volta à normalidade das funções e da vida.

Entre o mundo da doença (uma pandemia) e o mundo da ficção, quem fica com qual? Dito de outra forma, quais são os interpretantes mais próximos da realidade física do vírus e aqueles próximos de outras realidades? 

Temos a tendência de normalmente entrarmos em um jogo em que damos algum sentido às coisas que acontecem no mundo real. Alguns jogam um jogo procurando um sentido mais próximo do fenômeno vírus, como faz a ciência. Outros jogam um jogo distante do fenômeno, ligado às consequências sociais, políticas, religiosas da pandemia. Há ainda outros que jogam um jogo bem longe do vírus, ligado a outras concepções especulativas.

Como a ciência até o momento não deu conta integralmente do fenômeno do vírus corona, ou seja, não temos a medicação ou a vacina salvadora, a pandemia do vírus corona gera o medo da morte prematura ou das possíveis complicações que ele pode causar. Esse medo torna-se infinitamente poderoso, dando margem para interpretantes e representações que estão longe da doença. São as representações fantásticas, as fantasias absurdas, os remédios sem segurança cientifica comprovada ou remédios inexistentes, as teorias de conspiração e muitas outras invenções de informação.

Um interpretante distante do vírus é a crença de que a pandemia não existe, que todo o fenômeno que atualmente presenciamos é uma conspiração para cercear nossa liberdade. Outros afirmam que o vírus corona é um vírus criado e desenvolvido em laboratório para dominar e controlar o mundo.

A doença do vírus corona também sugere uma patologia envolvendo o modo de viver do homem contemporâneo. Essa interpretação, afastada do objeto vírus, diz que nosso viver anterior, que considerávamos “normal”, era o desequilíbrio, um pesadelo, cheio de contradições ecológicas, desigualdades sociais e que a pandemia é a conta de retaliação vingativa que devemos pagar. Metáforas religiosas falam, por um lado, do vírus como castigo divino e, por outro lado, do vírus que promotor de uma elevação cármica para a evolução do planeta.

O que ocorre é que interpretamos o que nos atinge segundo o repertório que temos acumulado ao longo da existência, ou seja, interpretamos o mundo a partir do que já conhecemos.

Quando não se conhece a totalidade da patologia, a efetiva intervenção e cura da doença - a vacina, o tratamento efetivo ou o medicamento curativo – os objetos observáveis são o corpo doente e o corpo sadio. Para essas representações, existe o tratamento dos sintomas no corpo doente e a prevenção do vírus no corpo sadio. São interpretantes de atuação objetiva e empírica sobre o corpo doente ou sadio, baseadas na medicina e nas ciências. Para essas representações também desenvolveu-se interpretantes pragmáticos de prevenção a que não estávamos habituados, como as lavagens frequentes das mãos, a desinfecção dos bens de consumo, o uso da máscara de proteção, já existente desde a grande pandemia da gripe de 1918, o distanciamento social do sujeito saudável e isolamento do sujeito doente, ou a mudança de hábito de por as mãos no rosto e contaminar-se.

O sujeito não especializado ou leigo pode seguir a interpretação objetiva dos profissionais de saúde e muitos acatam as providências de prevenção e tratamento existentes. Existe, porém, o leigo que prefere as interpretações ligadas a outras histórias, mais abstratas e mágicas e mais próximas da sua realidade, de suas crenças e hábitos.

A pandemia causada pelo vírus corona, fenômeno inesperado e de grande impacto na população mundial e suas múltiplas consequências, também inesperadas, deixou especialistas e leigos perplexos pela rapidez e abrangência de sua propagação, bem como pelo desconhecimento de seus efeitos.

Para grande parte dos dirigentes públicos, os políticos, por exemplo, trata-se de uma desordem que precisa ser prevenida, reorganizada e cuidada, pois ele tem seu cargo dependente da organização da sociedade. Tal interpretação é da ordem social. Há administradores que seguem as lições lógicas e racionais de epidemias e pandemias anteriores, ou seja, acatam as restrições de distanciamento social, a prevenção pelo uso da máscara, a quarentena e o controle do aumento da propagação do vírus, apesar dos inconvenientes sociais e financeiros que essas restrições acarretam.

Há aqueles, porém, que se apoiam em outros interpretantes, longe do fenômeno que acarretou a pandemia. Como a maioria das pessoas conhece os sintomas de uma gripe, alguns administradores, preocupados com o restabelecimento da ordem e de encontrar um interpretante mais rápido, mais ameno e adequado, minimizaram ou negaram a gravidade da doença e de uma pandemia com o objetivo de evitar a desordem e o consequente pânico social. São concepções como, “mas era gripe, apenas gripe”, avaliações comumente proferidas por administradores já no ano de 1918, face à pandemia da gripe espanhola.

Sendo um ser social, o homem não tolera bem as medidas científicas de prevenção da doença, como o distanciamento social, a máscara de proteção e a quarentena. Focados nessa premissa, assim como na preocupação com a estabilidade da situação econômica do país, muitos administradores têm sido reticentes em adotar as medidas restritivas, o que tem provocado o aumento da contaminação, assim como das metáforas e outras comparações fantasiosas, religiosas e mágicas, geradas pela ignorância, pelo medo da doença e pela falta de respostas e medidas concretas e racionais. 

Uma metáfora relacionada à saúde é a que se faz com relação à nutrição, cuja interpretação muda de uma geração para outra. No início do século XX, quando a gripe espanhola se espalhava pelo planeta, havia a crença de que o indivíduo mais forte era mais resistente. Em 1918, grassava a fome, a 1. Guerra Mundial e a desnutrição atingia muitas classes sociais. Nesse contexto, surgiu a crença de que “a doença raramente ataca um povo bem nutrido”, crença coerente com aquele contexto. Sem ser de todo falsa, essa interpretação da saúde vem passando através de inúmeras gerações, em que avós e outros conselheiros e cuidadores da saúde, além dos médicos da época, viam a gordura como sinal de reserva, defesa e, consequentemente, de saúde.

Metáforas verbais, visuais e sonoras sobre a doença, seus sintomas e efeitos sempre existiram. A atual pandemia já gerou a do vírus chinês, vírus alienígena, enxame mutante, doença das desigualdades e muitas outras concepções. Até que se consiga a cura definitiva para o vírus corona, muitas metáforas e comparações aparecerão.

Algumas doenças tiveram, ao longo da história, grande impacto social, gerando metáforas específicas.

Entre as contemporâneas, a tuberculose, no início do século XX, apresentava os sintomas de palidez, magreza, tosse e era comum o tuberculoso afastar-se socialmente. Pelas características desses sintomas e por sua duração, a metáfora foi a de uma doença romântica, misteriosa e temperamental, como bem caracterizou Thomas Mann no romance A Montanha Mágica, de 1924. Quando o bacteriologista escocês Alexander Fleming descobriu a penicilina que matava a bactéria da tuberculose, as metáforas foram se reduzindo até que atualmente não se menciona mais nem a doença, nem suas metáforas.

O câncer, durante muito tempo avaliado como “a doença sobre a qual não se fala”, foi metaforicamente interpretado como doença topográfica, de invasão, que cresce e que é vista como consequência de uma repressão emocional que eclode na doença.

A AIDS, doença de deficiência imunológica, tem sua transmissão através de contato sexual não socialmente aceito em muitas sociedades, ou através de seringas injetáveis infectadas. Sua conotação estigmatizada é de que sua contaminação é o castigo pela vida excessiva da pessoa.

A pandemia do vírus corona é, até agora, a doença mais democrática das anteriores, pois ataca todos, sem discriminação. Atualmente ainda sem vacina ou outro procedimento de cura, é marcada por conotações contraditórias e inúmeras metáforas, como de doença coletiva, de desordem civil, política, ecológica etc. Até sua melhor compreensão e tratamento, talvez uma vacina ou outra medida de cura, fica a pergunta:

Com qual metáfora ou qual interpretação o vírus corona, e consequentemente nós, seremos lembrados pela história?

 

Referências
1.   Umberto Eco, Seis Passeios Pelos Bosques da Ficção, 2009.
2.   Maria Teresa Santoro, Semiotik des Medikaments, 1998.
3.   John H. Barry, A Grande Gripe, 2020.
4.   Susan Sontag, A Doença Como Metáfora, 1978; AIDS e Suas Metáforas, 1989.